domingo, 21 de abril de 2013

Escolhidos

    Manhã de janeiro, o dia começara bem, nenhum sinal de chuva ou nuvens carregadas, o sol da manhã aquecia a alma e levantava os ânimos, enquanto uma leve brisa brincava com as águas do mar. Eu estava à proa daquele pequeno navio, com meu uniforme de capitão, apenas observando o embarque dos passageiros. Hoje seriam doze pessoas, uma tripulação um tanto diferente das que eu estava acostumado, visto que, sempre viajo com grupos de famílias ou amigos e, desta vez, os tripulantes mal se conheciam. Algo dentro de mim dizia que hoje o dia não seria bom, tentando convencer-me à adiar aquela viagem, porém, afastei tais pensamentos, concentrando-me, apenas, na rota que teríamos pela frente. 
    Primeira tarde juntos e eu já conhecia, de vista, toda a minha tripulação, cada um carregando suas próprias mágoas e fardos, não passavam de pessoas vazias, marcadas pelas angústias da vida, o mais triste é que eu era um deles. Nos olhares nada havia, exceto orgulho e tristeza, salvo aqueles pequenos olhos azuis, os mais vivos e alegres que eu já vi em toda minha vida, a dona deles, uma pequena e falante criança de oito anos, que dizia se chamar Rose. Talvez a única capaz de despertar a alegria nos demais, o que foi acontecendo, devagar, nas poucas oportunidades em que ela conseguia fugir da visão do pai e ir até as cabines ou ao convés, não importando quem fosse, ela teria intermináveis perguntas, e infinitos argumentos para fazer as pessoas sorrirem. Ela não se importava com a idade, cor, profissão ou passado de cada um, apenas queria vê-los felizes, era o pequeno anjo que alegrava aquele navio.
    A paz que a presença daquele anjo em forma de criança me trazia era algo inexplicável, porém, parece que a natureza, com todo seu egoísmo, não gosta de dividir sua ternura. A noite se aproximava, e aquela sensação ruim voltou a tomar conta de meus pensamentos, então, poucos minutos depois, o operário das máquinas surgiu na cabine, aqueles olhos cinza, que sempre demonstraram indiferença aos sentimentos, agora estavam tomados pelo medo, sua voz, tremula, revelava que algo estava errado: "Ca-ca-capitão, à-àgua, àgua, o casco, há um vazamento, a casa de máquinas não vai aguentar, o navio vai afundar, não temos mais que uma hora". Aquilo foi como uma facada em meu peito, não pelo navio, mas pelas vidas que se perderiam, havia somente um barco salva-vidas.    
    "Meu Deus, me ajude! O que farei agora? Droga, vidas estão em risco, oh, Senhor, me ajude!", foram os únicos pensamentos que ecoaram em minha mente, mas eu era o capitão daquele navio, deveria fazer algo, afinal, a falta de um barco salva-vidas era minha culpa. Mantive-me calmo e, por fim, consegui alinhar os pensamentos: "Vá você, operário, escolha os tripulantes mais fortes e experientes para lhe auxiliar com o barco, não estamos muito longe da costa, vão rápido e chamem ajuda, eu vou ficar e acalmar os demais.". Assim foi feito, ao longe, o barco salva-vidas ficava cada vez menor, se salvaram: um operário, um homossexual, um professor, um político, um cientista, um estudante universitário, e o pai de Rose.
     No navio, ficaram, além de mim, uma senhora de aproximadamente setenta anos, um paraplégico, um sacerdote, uma prostituta e nosso pequeno anjo, Rose. Todos estavam apreensivos, acolhidos no convés, o medo revelado em cada olhar. Escuta-se uma doce voz, uma criança falava: "Meu papai me disse uma vez que, quando morremos, nos tornamos estrelas, não tenho medo de ser uma estrelinha, por que vocês estão com tanto medo?", todos ficaram sem reação, uma criança conseguiu dizer algo que todos sabíamos, mas nenhum de nós queria admitir: Era o fim. Nuvens negras fecharam o céu, uma tempestade se aproximava, então, nos abraçamos, e ficamos ali, parados, em silêncio, procurando conforto nos braços um dos outros, raios caiam a nossa volta, aguardávamos o fim.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Milhares de léguas

     Mais uma noite de sono mal dormida, os pesadelos estavam ficando cada vez mais frequentes, desta vez, sonhei com a morte, estava em um quarto mal iluminado, um corpo jazia suspenso no centro, eu me aproximei e consegui ver seu rosto, era um rapaz, jovem, com olhos cinza e sem vida, suas feições marcadas pela dor e pela tristeza, ao seu lado, encontrava-se um homem, alto, usava um capuz, de modo que escondia seu rosto as sombras, uma carta estava em suas mãos: “Queria me desculpar, vocês não tem culpa de nada. Eu estava sozinho e só vinha esse pensamento de morte. Eu não queria fazer isso, mas era uma tentação terrível em mim. Perdoem-me”, não consegui ler o nome que assinava o bilhete.
     Manhã de segunda-feira, um dos dias mais depressivos da semana e, lá estava eu, no ponto, esperando o ônibus que, para minha angústia, demorava a aproximar-se. Não queria chegar atrasada na universidade, então, olhava nervosamente para o relógio, com a inútil esperança de que isso fosse apressar o motorista. Estava ali à apenas alguns minutos, o sol começara a nascer, até que, finalmente, ouço um barulho ao longe, o circular apareceu no final da rua. A porta do ônibus se abriu e um homem, que me parecia estranhamente familiar, desceu. Poucas pessoas circulavam tão cedo, de modo que o ônibus estava vazio. 
     Distraída, algo chamou minha atenção, um livro, abandonado sobre o banco. Aquilo despertou minha curiosidade, olhei em volta, ninguém parecia ser o proprietário daquelas poucas páginas encadernadas, peguei-o e comecei a folheá-lo, um poema estava claramente destacado: Despedindo-se de um amigo, de Erza Pound.  Li atentamente cada estrofe, tentando entender porque alguém destacaria com tamanho cuidado aquele poema em especial. Assim que passei os olhos pelo ultimo verso, uma brisa mais forte entrou pela janela, virando algumas páginas e revelando um pequeno bilhete, assinado por um tal de Fausto, que pedia ao amigo que não cometesse nenhuma besteira e pensasse em todas as pessoas que o amava. Não tive tempo de refletir mais, meu ponto havia chegado, estava cheia de perguntas, então, movida pela curiosidade, levei o livro.
     A péssima noite de sono veio cobrar suas dívidas durante as aulas, fiquei muito grata por, finalmente, ter acabado. O ônibus só passaria daqui uma hora, tinha tempo o bastante para analisar o livro, peguei-o novamente e, dessa vez, percebi algo novo: A primeira página recebia um carimbo, que já estava desgastado com o tempo, mas era um símbolo inconfundível, o livro fora retirado da biblioteca da universidade! Rapidamente procurei a bibliotecária, dona Odete, uma senhora muito simpática, que certamente me ajudaria. 
     "Lamento, querida, mas esteve livro foi retirado há exatamente um ano atrás, 13 de janeiro de 1998, por um ex-aluno, Fausto Oliveira", aquela doce voz ecoou em meus ouvidos, e um aperto em minha consciência a acompanhou, muita coisa poderia ter mudado em um ano, acredito que minha expressão deve ter demonstrado minha agonia pois aquela senhora me olhava com preocupação: "Há algo que queira me contar, pequena?" E eu contei, disse-lhe tudo, o sonho, o livro, o bilhete, tudo. Ela apenas escutou e, ao final, levantou-se, colocou a mão em meu rosto, e saiu, quando voltou trazia um jornal, entregou-me com olhos tristes, então disse: "18 de janeiro, Rodrigo, ex-aluno e meu neto, tirou a própria vida, enforcando-se em seu apartamento. Fausto, foi quem encontrou o corpo", lágrimas escorriam em seus olhos, ela respirou fundo, dando uma pequena pausa, como quem não aguentava mais continuar aquela conversa: "O jornal que lhe entreguei, a matéria principal traz detalhes da época, se quiser, pode ficar com ele..", então, ela foi embora.
     Voltei para casa, meus pensamentos retornavam no tempo, não sabia o que dizer, nunca me aproximei tanto da morte. Nunca sofri esse tipo de perda e, sempre que ouvia ou lia algo parecido, eram de pessoas que eu nunca conheci, não tinha nenhum tipo de afeto, mas, apesar de nunca ter encontrado esse rapaz, eu chorei, lamentei pelo sofrimento que vi nos olhos daquela senhora.  E fiquei ali, deitada, até adormecer, desta vez, não sonhei.     

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Lua


     As luzes do apartamento estavam apagadas, a pouca iluminação vinha da televisão muda, eu estava deitado no sofá, pensando em meus futuros atos. Uma brisa suave entrou pela janela, a sala pareceu ficar mais fria e um arrepio rápido percorreu todo meu corpo. Estava na hora, peguei uma jaqueta qualquer e saí, não queria me atrasar. O restaurante em que marcamos ficava a poucos quarteirões do meu prédio, resolvi ir andando. A lua destacava-se, cheia, no céu negro, parecia ter um tom avermelhado, o que me trouxe boas lembranças. As ruas estavam desertas e, algumas, pouco iluminadas, meus passos alternavam, ora lentos demais, ora rápidos demais. Uma garoa fina começou a cair, completando a cena depressiva e melancólica em que eu estava, tudo indicava que seria uma noite fria, e algo me dizia que também seria longa e inesquecível.
     A garoa havia parado, uma leve neblina tomara seu lugar. Estava numa rua mal iluminada, várias árvores compunham o cenário, de longe, podia se ouvir o farfalhar das folhas. Fechei os olhos por um instante, um vento aconchegante soprou em meu rosto e, novamente, um arrepio percorreu meu corpo, afastei todos os pensamentos, todo o passado que pesava sobre meus ombros e, por poucos segundos, senti-me limpo, como não me sentia há muito tempo. Mas, as mágoas me lembraram de como minhas mãos eram sujas, e que não merecia aquele momento de paz, tinha planos a cumprir, abri os olhos novamente. Alguém caminhava em minha direção, era ela, Angel, minha atual namorada. A pouca luz deixava aquele rosto delicado ainda mais bonito, o vento parecia brincar com seus longos cabelos castanhos, enquanto um sorriso tímido surgia em seus lábios, ela se aproximou e olhou em meus olhos, ah, aqueles olhos verdes,  tão lindos, resplandeciam toda sua inocência.
    "Porque meu amor está aqui, numa rua deserta, caminhando tão solitário e tristonho?" ela perguntou, soltando uma pequena risada. Eu nada podia fazer, se não, entrar naquela brincadeira infantil, "Estava indo encontrar minha pequena, mas, parece que ela me achou primeiro", respondi, com sorriso forçado, fingindo ser um bobo apaixonado. "Mô, o restaurante tá fechado,  e agora?", ouvi aquela doce voz novamente. Droga, tudo estava planejado, agora, não seria possível seguir meus planos, mas, pensaria em algo mais tarde, por enquanto, apenas sorri e disse: "Ah, tenho uma ideia, então, que tal irmos para meu apartamento? Podemos pedir uma pizza, que tal?", ela apenas assentiu com a cabeça. O caminho até meu apartamento foi rápido, andávamos de mãos dadas, em silêncio, e com passos largos.
     Assim que entramos, levei-a até a varanda, com a desculpa de observarmos as estrelas, eu precisava ganhar tempo, precisava pensar em algo rápido. "Está chuviscando, de novo, a noite parece tão triste hoje, nem há estrelas no céu... Bem, a mesma pizza de sempre, meu amor?", enquanto Angel falava, um estalo veio em minha mente, já sabia o que fazer, "A mesma de sempre, pequena..", respirei fundo, pensando com cuidado no que iria dizer, enquanto andava em  sua direção, "Sabe, uma vez um amigo me contou que, às vezes, a lua fica nessa cor, meio avermelhada, em memória do sangue de vítimas inocentes, mas, eu nunca entendi porque a lua faria isso, afinal, todos somos culpados, e a única coisa que temos em comum é a morte..", quando ela percebeu já era tarde demais, minhas mãos estavam envoltas em seu pescoço e sua boca, ela se debatia com força e tentava gritar, mas, dessa vez fora ainda mais fácil do que com a anterior, era a terceira morte só esse mês. Em pouco tempo ela parou, desistiu da vida, talvez uma boa escolha, mas, prefiro quando elas lutam ou gritam, a emoção é maior. Beijei aqueles lábios já sem vida, “Bons sonhos, meu amor”, foram minhas últimas palavras para ela.